"Quem luta, nem sempre ganha, mas quem não luta, perde sempre!"

 
Sexta-feira, 14 de Setembro de 2007
O Caminho das Aves

"Este romance é uma homenagem a todos os homens e mulheres que lutaram contra o fascismo – aos que essa a luta dedicaram as suas vidas e, em muitos casos, as perderam; aos que, vencidos num momento pela brutalidade pidesca, retomaram a luta; aos que, ainda esporadicamente, juntaram a sua a outras vozes no combate à ditadura.

Constituiria um exercício inútil procurar identificar qualquer dos personagens deste romance com qualquer personagem real. No entanto, o Autor sentir-se-á gratificado se os lutadores antifascistas que o lerem nele puderem rever-se através da memória."

José Casanova

 

 

O romance O caminho das Aves, de José Casanova, descreve-nos através de uma escrita simples mas ilucidativa e profunda, o duro caminho percorrido por milhares de portugueses que, convictos do seu ideal de liberdade e solidariedade correram todos os riscos e se entregaram à luta corajosamente de forma apaixonada e alegre.

 

“... A greve foi em cheio, parou tudo, até o comércio, só ficou uma mercearia aberta, a guarda prendeu quatro camaradas, a população cercou o posto e libertou-os e prendeu os guardas, a malta cortou os fios do telefone e a aldeia foi nossa durante 2 dias, até houve quem começasse a planear a distribuição de terras – acrescenta Pires. Depois os gajos vieram em força e começaram a prender toda a gente que apanhavam, levaram mais de duzentas pessoas, a malta entrava para os carros prisionais a gritar viva a liberdade, abaixo o fascismo... Andam por aí muitos camaradas fugidos.
Faz uma pausa e acrescenta: A gente aqui viu um bocadinho do futuro, Francisco, e é bonito.
Informa Pires: Em Montemor houve uma concentração em frente à Câmara e o Vacas chamou a guarda e mandou disparar, mataram um trabalhador, o funeral é amanhã.
Quem é o Vacas?
É o presidente da Câmara.
Rui explica-lhe agora, o plano que tem para essa madrugada:
Vamos fazer inscrições nas paredes, para os gajos verem que, por muitos que prendam, há sempre quem continue a luta... Despede-se dos amigos, está o sol a nascer, e parte na direcção de Montemor. ...
... Os camaradas estão ali – prossegue a rapariga, apontando para o centro da vila – O funeral vem de Vendas Novas  acompanhadopor dez jipes da guarda.
Vamos andando para o cemitério – diz alguém. Num muro comprido, caiado de branco, lê-se: «Morte aos assassinos de José Adelino Santos.»
Junto ao cemitério estão agora mais de mil pessoas, é uma multidão compacta, em profundo silêncio. Chegam os primeiros jipes, logo atrás vem o carro funerário, depois mais jipes. Um cordão de guardas barra o acesso ao cemitério. Ninguém pode entrar – grita um graduado. A multidão de homens e mulheres avança em silêncio, as mulheres à frente. Ninguém pode entrar – repete o capitão em tom de ameaça. A multidão continua a avançar, mulheres e homens, de rostos fechados, em silêncio, rompem o cordão e entram no cemitério. ...”

 

...À sua frente está agora o polícia da voz vinda de longe. Tem nos lábios um sorriso escarninho.
Acende um cigarro e, lentamente, aproxima a ponta acesa do rosto do preso que recua um passo e cai. O polícia puxa uma fumaça, debruça-se e atira-lhe o fumo para os olhos.
Tenta desesperadamente trazer à memória os rostos dos amigos...
O polícia repete a operação, desta vez virando a ponta acesa do cigarro na direcção do peito nu do preso. A voz do polícia está agora muito perto: Tens apenas duas hipóteses, rapaz, ou falas, ou sofres, ou falas, ou morres.
Pelos olhos de Francisco passa um brilho vivo e, sem se aperceber, sorri.
De súbito, os mesmos dois polícias erguem-no e imobilizam-no. No mesmo instante, sente no peito, uma dor lancinante, como se uma agulha grossa lhe entrasse no corpo e, lá dentro se fragmentasse em milhares de finíssimas lâminas, que lhe dilaceram os músculos, que lhe rasgam a carne e lhe sacodem o corpo em tremores compulsivos. Solta um urro monstruoso, liberta-se do braço e atira-se ao polícia, uma cabeçada a que o outro se furta facilmente...”

Excerto de O Caminho das Aves


O romance O caminho das Aves, é um extraordinário documento sobre a luta que conduziu ao derrube do regime fascista e que nos permite hoje viver em liberdade, mas é também, e acima de tudo, um hino ao valor da amizade e da camaradagem e à solidariedade e fraternidade indissossiáveis destes valores.

 

“Magro, pálido, com um ar sofredor, contudo mantendo o habitual sorriso fraterno: é Mário, acabado de sair da prisão. As cicatrizes nos pulsos, que ele não esconde, atraem a atenção de Francisco. Fui cobarde, estive quase a falar, valeu-me, no último momento, ter-me lembrado dos amigos.
Francisco prende-lhe os braços, numa carícia leve passa as mãos pelos pulsos do amigo.
O outro prossegue: Não seria capaz de voltar a falar-te se tivesse traído... Mas fui cobarde... Francisco abana a cabeça, enquanto o outro continua: Apesar disso, toda a gente me tratou como se fosse um heroi. E foste. Tu não sabes. Sei que preferiste morrer a trair os teus amigos.
Foi um momento de fraqueza, de vacilação.
De coragem, de grande coragem.
Dizes isso porque és meu amigo.
Porque sou teu amigo, digo-te sempre o que penso.”

 

“...Vieste despedir-te de mim, aposto.
E não só – diz Francisco, apontando para o embrulho – trouxe-te uma prenda.
Posso abrir – pergunta o rapaz.
Sem esperar pela resposta, chega a chama do isqueiro ao cordel, rasga o papel que encvolve a prenda: é a fotografia do Che, corpo inteiro, boina na cabeça, mochila às costas, uma espingarda nas mãos; em baixo uma frase extraída de um dos seus discursos: «Toda a nação é um grito de guerra contra o imperialismo e um clamor pela unidade dos povos contra o maior inimigo do género humano: o imperialismo americano.»
Com os olhos muito brilhantes obriga Francisco a levantar-se, dá-lhe um abraço prolongado e sufocante, depois, abanando a cabeça e limpando os olhos, murmura: Só tu, tu és único – e, perante a ironia que vê nos olhos de Francisco, acrescenta: O Vasco tem razão, és único. Ele também é, e tu.
Quando regressares, possivelmente... Não me encontrarás – diz Francisco, em voz baixa.
...Na manhã seguinte, na obra, Eloi entregar-lhe-á uma carta de pedro: «Meu querido amigo Francisco, meu muito querido amigo, escrevo-te momentos após a tua saída de minha casa e a poucos minutos da minha partida. A ideia de que, quando regressar, não te encontrarei, esmaga-me de tristeza e alegria. Um dia, não sei quando, encontrar-nos-emos. Numa qualquer divisão da nossa casa grande da amizade. Até lá, guardarei o poster do Che e tentarei seguir o seu exemplo de coragem, de coerência, de dignidade.»”

Excerto de O Caminho das Aves

 

A amizade é um sentimento tão forte e tão belo que ultrapassa qualquer definição que dela possamos querer fazer.

Tal como nos diz, e prova, o autor várias vezes ao longo do romance, A AMIZADE É TUDO!

 

São estes valores de amizade e camaradagem, em simultâneo com uma força inquebrantável dos ideais de liberdade, justiça, igualdade que percorrem todo o romance de uma forma convicta e contagiante não nos permitindo ficar indiferentes ao desenrolar dos acontecimentos. Antes, e não poucas vezes, apetece-nos encarnar nos personagens e sermos nós a ocupar os seus lugares. E sem que disso demos por ela, estamos a viver intensamente as alegrias, a luta e as revoltas do Francisco, do Eugénio, do Vasco, do Albano, da Marta...

São estes valores de amizade e camaradagem, estes ideais de luta por uma sociedade e um mundo melhor que, hoje como ontem, são o caminho para alcançar uma sociedade mais justa e mais fraterna.

O Autor, José Casanova, escreveu que: “...o Autor sentir-se-á gratificado se os lutadores antifascistas que o lerem nele puderem rever-se através da memória.”

Não estando eu entre os citados, não tenho dúvidas que tal aconteceu. Que aqueles que travaram a luta de resistência contra o fascismo, não só se reviram como se sentiram homenageados ao ler o livro.

O Caminho das Aves é também uma grande lição de humanismo e de como a riqueza maior é efectivamente a amizade e a certeza dos ideais assumidos.

Um romance extraordinário, bonito, profundo. Talvez o melhor romance que li nos últimos anos.

Lamentavelmente, li-o apenas 5 anos depois da sua edição. Considero-o IMPERDÍVEL para quem ainda não o leu.

 

Uma nota ao autor: Só é possivel a alguém escrever uma obra tão bela e transmitir um sentimento tão forte, comungando profundamente os valores e ideais contidos no romance.
Como tal, atrevo-me a dizer que este livro foi escrito mais com o enorme coração do José Casanova que com a mão do romancista.



publicado por vermelho vivo às 23:51
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De Aristides a 16 de Setembro de 2007 às 23:04
Já li os três romances referidos de José Casanova. Achei-os todos magníficos mas, talvez cometendo um injustiça para os restantes, achei O Caminho das Aves o melhor. Não sei se foi por ter sido o primeiro que li de Casanova e ter ficado simplesmente siderado pela capacidade literária, pela fina sensibilidade ou seja lá porque foi. O que sim, sei, é que José Casanova ganhou em mim um leitor fidelíssimo. Pena que a temática lhe afunile os públicos, porque vai haver muita gente que o vai por de parte sem o ler só por ser comunista ou por os seus livros falarem da luta dos comunistas por um Mundo melhor. Paciência, perdem eles, mas ganhámos nós bons livros e sobretudo mais um Grande escritor.
Um abraço


De vermelho vivo a 16 de Setembro de 2007 às 23:28
Amigo Aristides, também temo cometer a mesma injustiça, mas o enunciado na resposta anterior esclarece a escolha. Concordo contigo quanto à constatação de que a condição de destacado dirigente comunista impede José Casanova de ser considerado pelos preconceituosos criticos e os submissos publicitários livreiros como um dos grandes escritores romancistas portugueses. No entanto, e mais importante que isso, é nós constatarmos através da leitura dos seus romances o enorme valor que ele efectivamente tem.
Um grande abraço,


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